Ter filhos é, de alguma maneira, construir pessoas. Do zero, a gente ensina tudo. Tudo, mesmo. E ensinar a comer ou a andar é bem diferente de ensinar abstrações como paciência ou generosidade. Tem horas que só o exemplo ajuda, tem vezes que nem ele consegue. É preciso colocar o dedo na tomada, é preciso provar limão - e talvez seja preciso fazer pão.
Adorei este texto do escritor Vlad B Popa. Ele conta como convidou a filha, Ioana, para fazer pão seguindo uma única regra: se cometessem um erro a qualquer momento do processo, seriam obrigados a recomeçar o processo desde o primeiro passo. A dupla demorou 26 dias para assar um pão fofinho. Abaixo você confere a aventura dos dois e os aprendizados que ela trouxe. A tradução é de Primi Stili.
- Bichinho, você ajuda o papai a fazer pão?
- Pão de verdade?
- Sim, bichinho, pão gostoso e fofinho para a gente comer.
Um segundo depois ela estava na cozinha. Foi assim que a nossa aventura de 26 dias para fazer pão começou.
Em uma hora, ou um pouquinho mais, a gente precisa fazer a massa. Se não conseguirmos, nós precisaremos começar tudo de novo em outro momento.
- Sério?
- Sim, filhota, essa é a regra.
- Tá bom…
Eu fiz questão de criar esse sinal de “pare” desde o início. Um sinal que significaria que não havíamos conseguido fazer as coisas direito. Era preciso para que não se perdesse objetivo da aventura.
- Primeiro a gente peneira a farinha.
- Por que, papai?
- Pra ter certeza de que não há nenhuma pedrinha ou carocinho que vá estragar o nosso pão mais tarde.
- Pedra? É. quebraria os nossos dentes… onde está a peneira?
Farinha. Peneira. Criança. Não é uma combinação muito produtiva, especialmente quando tudo é novidade.
- Mas, papai, onde estão as pedras?
- Não tem nenhuma, bichinho. Isso significa que a farinha estava limpa. Mas eu tenho uma pergunta…
- Sim?
- Onde está a farinha?
- O que você quer dizer?
- Bem… onde está a farinha? Deveria estar aqui na bacia.
Ela me olhou com olhos imensos e cílios brancos. Ela estava suada a ponto de estar grudenta. Tinha farinha em cada centímetro da pele, das orelhas até os joelhos, saindo por debaixo do vestido. Ela olhou ao redor e colocou a mão no peito em sinal de surpresa.
- Ah!, papai, está por todo lado!
Em meia hora com a peneira (porque ela peneirou a farinha uma vez depois da outra e de novo e de novo e de novo) ela conseguiu espalhar farinha por toda a mesa, pelo chão, pelo balcão, pela pia e pelo pai dela. Eu estava coberto de farinha até as orelhas.
- Bichinho, já faz quase uma hora que começamos e nosso tempo vai acabar antes que a gente consiga limpar essa bagunça. Por hoje é só.
- Só?
Foi uma decepção horrível, especialmente porque ela já havia contado à mamãe que faria um pão incrível para ela.
- Está tudo bem, filhota. Nós tentaremos de novo e talvez conseguiremos na próxima.
- Ah, papai…vamos tentar mais uma vez agora...
Havia mais dor no rosto dela do que no de um padeiro que acabou de queimar uma centena de baguetes. Eu a peguei no colo e a levei até o espelho. As lágrimas dela cavaram duas linhas no seu rosto até o queixo, uma em cada bochecha. O resto do rostinho dela estava salpicado de farinha e tristeza. Ela caiu na gargalhada quando se viu no espelho.
- Amanhã, Ioana. Amanhã nós faremos uma massa de pão maravilhosa.
Mas não aconteceu no dia seguinte também. Conseguimos passar pela parte de peneirar a farinha, mas o fermento nos deu trabalho. Depois que a Ioana peneirou a farinha e criou uma caminha nela com as suas mãos, eu lhe mostrei o pacotinho mágico.
- Olha, filhota, isso é fermento. Faz com que a massa fique fofinha, isso se a gente acordá-lo e alimentá-lo direitinho.
- Ele dorme na geladeira?
- Sim. Ele descansa quando está frio e não faz nada. A gente precisa alimentá-lo com água quente, açúcar e um pouquinho de farinha pra fazer ele trabalhar.
Ela abriu o pacote com os dedinhos habilidosos sem nem reclamar que é um pouco nojento ao toque (como eu esperava que ela fizesse). Ela colocou um pouquinho de açúcar mas não teve paciência para esperar a água esfriar.
- Traz a água, papai! Olha como ele está com fome…
A maior alegria dela é alimentar coisas. Nada a deixa mais feliz. Ela alimenta qualquer coisa que esteja ao seu alcance: os pais, as visitas, pássaros, animais, lagartas, brinquedos, flores (doce de chocolate pra elas, para que elas floresçam docemente).
- A água está muito quente. Nós precisamos esperar que esfrie um pouco.
- Nãoooo, papai, ele está chorando de tanta fome!
- Você vai machucá-lo…
Ela jogou água fervendo no fermento que, como a maioria dos organismos vivos, não ficou muito feliz.
- Ótimo! Ele não está mais com fome. E agora?
- Em dez minutos ele deve começar a borbulhar. É sinal de que o fermento começou a funcionar e de que nós podemos fazer a massa. Você pode ir brincar enquanto espera.
Ela não saiu da mesa. Prestou toda a atenção possível à água no meio da farinha.
- Papai, já passou dez minutos?
- Sim. Onze, na verdade.
- Então por que não está borbulhando?
- Bichinho, o que acontece quando você não tem paciência para esperar a sopa esfriar e prova quando ainda está muito quente?
- Eu me queimo.
- E?
Ela olhou para a água parada, olhou pra mim, olhou pra farinha, olhou para o teto…
- O fermento se queimou porque a água estava muito quente?
- Sim, Ioana. Nós não tivemos paciência para deixar a água esfriar e deu errado. Se não borbulha, a massa não fica boa.
Mais um fracasso. Mais uma padeira muito, muito triste. E foi assim que, a cada dois ou três dias, nós seguimos tentando fazer pão. Cometemos todo o tipo de erros, mas nunca o mesmo erro duas vezes. Eu fiquei muito feliz por ela não ter cometido o mesmo erro duas vezes. Depois que conseguimos quebrar os ovos, depois da tragédia da massa que grudava nas mãos por não termos passado óleo, depois de esquecer de colocar sal, nós finalmente conseguimos fazer uma massa.
- Vítória, papai! Finalmente! Para o forno!!!
- Ioana, nós precisamos cobrir a massa com uma toalha e deixá-la crescer em um lugar quentinho. Só aí é que a colocaremos no forno.
Quando ela ouviu que teríamos que esperar mais duas horas ela não quis saber o quão fofinho o pão iria ficar. Ele tinha que ir para o forno já.
- Bichinho, você viu que quando nós não tivemos paciência as coisas deram errado…
- Não se preocupe, papai, eu estou sentindo que vai ficar bom e fofinho.
Quando eu tirei aquela coisa do forno (porque não dava para chamar de pão), ela perdeu parte do otimismo. Quando ela me viu cortando como se estivesse cortando um tijolo, ela perdeu mais um pouco do otimismo. Depois de mastigar um pedaço por cinco minutos, ela perdeu todo o otimismo.
- Se nós tivéssemos tido paciência para esperar a massa crescer ele teria ficado bom?
- Sim. Mas não se preocupe. Os passarinhos gostam de pão assim.
Ela se alegrou imediatamente (o resultado a havia deixado muito triste) e, depois que viu alguns passarinhos brigando pelo pão duro que nem pedra, ela me disse que queria tentar de novo.
- Daqui a três dias, Ioana. Vamos descansar um pouco. Sábado a gente fará um pão ótimo e todos os nossos convidados comerão também.
Era o teste final. Um pão não só para a gente, mas para os nossos amigos também. Ela não conseguia conter a ansiedade em assar algo tão importante e passava me perguntando se já era sábado, até que uma hora o sábado chegou. Ela me disse “nós vamos fazer pão hoje” em vez de “bom dia, papai”.
Tudo deu certo. Foi maravilhoso ver o quão focada e paciente uma criança consegue ser quando um pão depende dela. Eu estava tão feliz que tive que cuidar pra não sorrir demais, se não ela podia achar que eu estava rindo dela. Não só ela não estava mais impaciente como ela me repreendeu quando eu não prestei atenção suficiente ou quando eu fiz algo diferente do que havia ensinado antes.
- Já cresceu o bastante, pai?
Quando eu tirei a toalha da bacia e ela viu a massa subindo para além das bordas, ela começou a pular. Quando nós tiramos aquele pão lindo e torradinho do forno ela gritou tão alto que até os astronautas ficaram sabendo que estava pronto. Quando nós cortamos o pão, revelando como ele estava branquinho e fofo por dentro, ela foi buscar o tablet para tirar fotos. Quando nós sentamos na mesa e provamos e fizemos “hmmmmm” ela não disse mais nada. Ela sentiu tanto orgulho e tanta felicidade que ela não conseguiu falar, mas os olhinhos marejados e as mãozinhas que batiam palmas baixinho disseram tudo.
Nós demoramos 26 dias e cada um deles valeu a pena. A Ioana aprendeu que fazer as coisas direito na vida requer paciência, esforço e perseverança? Claro que não, mas eu tenho mais uns quinze anos para assar pão e fazer outras mil coisas com ela que mostrem tudo o que existe por detrás de cada sonho realizado.
Vlad B. Popa, autor de Beginner Dad