Fazer dos livros espelhos da realidade das crianças e dos jovens negros no Brasil virou missão para a escritora, pesquisadora e arte-educadora Kiusam de Oliveira. Em suas obras, a contadora de histórias busca raízes e referências africanas, valorizando a ancestralidade e a autoestima das tradições afros. O site Catraquinha fez uma entrevista muito inspiradora com a autora dos livros "O Mundo no Black-Power de Tayó", Omo-Oba: Histórias de Princesas, Omo-Oba: Histórias de Príncipes e O mar que banha a ilha de Goré. Gostei tanto que reproduzo alguns trechos aqui. Vem ver e se inspirar também!
Catraquinha: como a literatura infantil e a arte podem servir como ferramentas para falar sobre representatividade?
Kiusam de Oliveira: (...) proponho textos capazes de revelar a beleza do povo negro, fortalecendo as características da criança negra que possui cabelos crespos, nariz largo, lábios grossos, etc. Isso também revela a possibilidade de brancos refletirem sobre seus privilégios em sociedades racistas como a nossa, entendendo que há outros padrões de beleza e que podem ser solidários numa luta que é de todos.
Tenho chamado o tipo de literatura que produzo de “Literatura Negra do Encantamento”. Ela está focada na ancestralidade e no fortalecimento das identidades negras. Ela é capaz de atingir as estruturas psíquicas mais profundas de jovens e crianças negras, provocando as costuras psíquicas necessárias para que suas identidades, fragmentadas pelas vivências racistas, sejam reconstruídas de forma saudável.
Tal literatura depende da arte presente nas ilustrações que devem encantar crianças e jovens negros para que se sintam orgulhosos do que veem e se reconheçam naquelas imagens. Esse tipo de literatura considera as situações de conflitos existentes nos corpos negros bem como no corpo social, as tensões presentes nas relações interpessoais, sem perder de vista a necessidade de reencantamento pelo próprio corpo. Também apresento adultos negros que representam o belo, o positivo, um padrão de beleza afrocentrado, desvalorizado na sociedade em geral, mas que no campo da fantasia dos meus livros é extremamente valorizado.
Catraquinha: seus livros, embora apresentem diferentes temáticas, trazem à tona uma questão mencionada anteriormente por você e fundamental na construção da identidade de qualquer povo: a ancestralidade. Nesse sentido, por que resgatar as histórias africanas ajuda a empoderar crianças negras?"
Kiusam de Oliveira: penso ser muito injusto num país de maioria negra continuarmos a ter de pedir licença para falar o que pensamos. Num país ‘machocêntrico’ como o nosso, os homens desqualificam as mulheres de várias formas. Esse ‘machocentrismo’ produzido pelo homem branco, católico, de classe média, racista, homofóbico, misógino, etc., precisou reforçar o tipo feminino carente, dócil, perturbado, inocente, inábil, incapaz, incompetente, dependente, tipos presentes nos contos de fadas. Os mitos que constituem a chamada “literatura infantil” são, segundo o psicólogo Bruno Bettlheim, utilizados como forma de ajudar a criança ‘a encontrar significado na vida’.
E aí eu pergunto: dentro desse ponto de vista, de que forma uma criança negra pode encontrar significado positivo na vida se não consegue se ver como personagem central no universo literário brasileiro? Que tipo de identidade está a ser formada na criança negra ao apresentarmos insistentemente contos como Branca de Neve, Gata Borralheira, Cinderela, João e Maria, Cachinhos Dourados, Rapunzel, etc.? Eu posso lhes responder: estará sendo formada uma identidade deteriorada, onde rapidamente a criança negra passará a desejar ser o que jamais será: uma criança branca.
Catraquinha: É bem mais do que o resgate de histórias, portanto, mas o despertar de uma responsabilidade em relação à continuidade das tradições de matriz africana...
Kiusam de Oliveira: é fundamental resgatar as histórias africanas, porque se trata de tesouros preservados pela oralidade e que são reificadas no cotidiano de diversas formas, ainda que de formas inconscientes, por nossos corpos. “Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”. Para mim, esse provérbio africano diz tudo, com pouquíssimas palavras.
Impactante, né? O que você achou?