Menos brincadeiras e mais tecnologia. Não sei se na sua casa a matemática da convivência anda mais ou menos essa, mas, conforme a psicoterapeuta e palestrante do TEDx SP Lucia Rosenberg, é essa a conta que muitas famílias têm apresentado no consultório dia após dia. Especialista em relações familiares, Lucia foi a convidada de outubro para a Roda de Encontros Matutaí, em São Paulo, onde falou sobre o cultivo dos vínculos familiares. Primi Stili aproveitou a passagem dela pelo evento para aprofundar o assunto e mostra o resultado desse bate-papo aqui. Vem ver:

Primi Stili | As relações dos pais com o trabalho sofreram um grande abalo com a era digital, os smartphones e o Whatsapp, deixando todo mundo online quase todo o tempo. Como isso afeta os vínculos familiares?

Lucia | Esse período online, essa jornada de trabalho que não termina, atrapalha muito os vínculos familiares. Existe uma brincadeira que diz assim: "onlife" ou "offlife". E de fato, estando assim, conectado o tempo todo, não se presta atenção no que está acontecendo ao redor, não se olha mais nos olhos, se ouve mais ou menos porque se está prestando atenção em outras coisas. Além dos vínculos ficarem comprometidos, o exemplo que você está dando é dos piores. Como você vai querer que seu filho se desligue, preste atenção? Daí já foi, porque ele está "children see, children do". Ele está repetindo o que ele vê.


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Primi Stili | Uma grande angústia dos pais é dosar o tempo que eles precisam ter para si próprios e o tempo que destinam a brincar com os filhos. Existe alguma regra ou recomendação que possa reduzir essa angústia? Como encontrar, depois de ser pai e mãe, o tempo que é nosso, de homem e mulher dentro da família sem desmerecer o tempo das crianças?

Lucia | É incrível como as pessoas procuram regras, não existe nenhuma regra de quanto tempo você deve passar com seu filho, ou passar como casal, sozinha, com o trabalho. A gente tem essa angústia diária e faz parte do nosso trabalho de malabarista poder equacionar isso tudo. Eu acho que, acima de tudo, tem que ter bom senso, poder perceber o outro, a demanda, a necessidade, a carência, a falta que você está fazendo em cada lugar e tratar de encontrar esse tempo. Não está fácil. A jornada está longa. Mas se a gente tiver a atenção ligada às demandas de quem convive com a gente, fica mais fácil descobrir a sua maneira de ser justo. Nem precisa ser rígido. Às vezes os filhos precisam mais, o casal precisa mais, o trabalho que demanda ou o casamento. Não crie regras e nunca desligue o bom senso, a atenção e a curiosidade de como andam as coisas.

Primi Stili | O que você acha do Movimento Slowparenting? Reduzir o ritmo e destinar mais tempo para viver momentos simples e cotidianos em família ajudariam a fortalecer esses vínculos?

Lucia | De fato a gente precisa de mais tempo com os filhos. Vi uma pesquisa que revelou que o pai americano consegue passar 7 minutos por dia com os filhos em média. O vínculo é construído no dia a dia. Não é o fato de sermos uma família que garante que os vínculos sejam fortes. Isso é ilusão, é mentira. Os vínculos são construídos a cada conversa, a cada olhar, a cada abraço, na hora certa, a cada sorriso que reconforta, a cada estímulo que você dá a um feito do seu filho, a cada reforço e apoio a algo que deu errado. Tente pelo menos o tempo de uma refeição, uma viagem no final de semana, qualquer tempo que conseguir para passar só com seu filho, sem interferências externas. Esses momentos são importantes, são duradouros, porque reverberam em muitos outros momentos, na segurança que dá aos filhos.

Primi Stili | Qual a importância do livre brincar na constituição dos laços afetivos dentro da família? O que devemos prestar atenção ao interagir com nosso filho ou simplesmente ao observá-lo brincando? Que coisas podemos aprender sobre eles nesses momentos?

Lucia | Brincando somos todos mais parecidos, costumo dizer. Na brincadeira dissolve-se a assimetria tão necessária por tanto tempo na criação dos nossos filhos, daquilo de sermos os mas velhos, os que sabem mais, que têm mais habilidades. Na brincadeira isso se dissolve. Brincando com os filhos você os ensina a ganhar sem arrogância e a perder sem humilhação. Ensinamos a transmitir, obedecer e compreender as regras, além de cumpri-las. Na brincadeira, se faz time dos irmãos que se opõem, a mãe tem o gesto desajeitado e aprende com o filho que sabe fazer direito, o pai acaba obedecendo regras criadas pela filha. Na brincadeira, os papéis se dissolvem e se misturam, por isso, ficamos todos mais parecidos.

Primi Stili | Para finalizar, como você vê o uso da tecnologia pelas crianças? Quais os limites dessa relação?

Lucia | O uso da tecnologia deve ser tão cuidadoso como o uso feito por nós, adultos, ou mais. Hoje é uma ferramenta de estudo, de escola, faz parte do material escolar. E isso, às vezes, abre precedente para exagero de tempo. Acho que o tempo com qualquer aparelho tecnológico, seja para estar estudando, pesquisando, lendo livro, tem que ter limite, porque a vida não acontece só ali na telinha. Isso precisa ser reforçado cada vez mais. Isso envelhece a alma das crianças, emburrece seus corpos e tolhe o mundo de relações. De novo, eu não tenho nenhuma regra pra isso, mas o tempo deve ser observado para que a gente não fique "offlife".