João Vicente tem 5 anos, acaba de concluir a Educação Infantil e, ao lado dos colegas, comemorou agora em dezembro a transição para o 1º ano do Ensino Fundamental. Até aí, nenhuma novidade, não é? Mas quem via a mãe de João, a publicitária gaúcha Laura Patrón, se debulhando em lágrimas intuiria que aquele menino em uma cadeira de rodas tinha sim muito a comemorar - e emocionar.

Laura viu o filho ter um AVC com apenas 1 ano e 8 meses, viu João ser internado e passar 71 dias lutando bravamente pela vida e viu um diagnóstico raro chegar pela voz dos médicos: a grave doença que o atingira acontece em "meia pessoa em um milhão" (foi assim mesmo que escutou) e se chama Síndrome Hemolítica Urêmica atípica (SHUa). Na prática, essa doença, de origem genética, se espalha pelo corpo destruindo os glóbulos vermelhos do sangue e causando problemas no sistema imunológico. No caso de João, sair do hospital com graves sequelas, como não caminhar e mal falar, mexia com a força de Laura, que não queria sucumbir às previsões pessimistas do médico.

"Me diziam pra eu me despedir do menino que eu conhecia. Mas eu não conseguia aceitar. Eu acreditava que haveria um tratamento que o faria superar. E fui atrás", conta Laura.

Existia sim, mas custava uma fortuna para as condições financeiras da família, fazendo surgir assim o Avante Leãozinho, uma campanha para financiar o tratamento de João que já está prestes a finalizar a segunda fase.

Avante Leãozinho {O Cérebro é Sagrado} from Avante Leãozinho on Vimeo.

É por isso que Laura, a garota sorridente da foto aí de cima, divertindo-se com um menino mais sorridente ainda, se emocionou tanto na formatura do filho.

"O João melhorou muito nos últimos meses. Ganhou muito tronco e capacidade de sustentação. Está falando cada vez mais palavras e vocalizando sons novos. Isso significa que o plano passado deu muito certo", conta, agora envolvida em um novo método que pode estimular partes do cérebro atingidas pela doença:

"Eu estou muito empolgada com o que pode acontecer. Vai acelerar muito o processo do João. E olho para isso como uma alternativa para outras crianças também, por que não?", comenta Laura.

Nessa semana de tanta emoção, Laura publicou uma carta muito humana e forte na página do Go Writers no Facebook. Tão emocionante e inspirador que compartilho na íntegra aqui. Vem ler e ajudar


"João,

Tu carrega uma placa, filho. Eu gostaria de dizer rótulo, mas ela pesa. E na verdade, não gostaria de dizer nada, mas preciso. Na tua placa está escrito algo como: Menino normal que descobriu ter uma doença rara quando tinha um ano e oito meses e quase morreu enquanto sofria um AVC muito grave que o deixou preso, em uma história de ficção científica & uma cadeira de rodas amarela, pobrezinho, totalmente dependente da mãe, vive uma vida limitada e triste. Andava e não anda, falava e não fala. Foi normal, não é mais. Nunca estará dentro da caixa de novo.

Soa cruel, eu sei. Mas quero que tu escutes isso de mim antes de sair mundo a fora lendo isso no olhar das pessoas quando encontram o teu. Antes das pequenas – ou grandes – crueldades que podes receber de uma sociedade tão despreparada para a empatia com o diferente. Onde tudo – absolutamente tudo – vai ser mais difícil pra ti. A calçada, a escola, os trabalhos. Amores. Acesso, em tantos sentidos.

Eu também carrego uma placa, filho. A menina que foi mãe jovem, viveu um relacionamento abusivo, quase perdeu o filho, e agora é uma “mãe especial” além de ser uma solo, pacote mais que completo. Também nunca mais vou estar dentro da caixa (o que hoje é um grande alívio, espero que tu possa entender isso logo).

Fazem quatro anos que vivemos essa aventura. Juntos. E dois, que me dei conta das placas, das caixas, de quem somos. Um dia decidi que tu teria uma mãe feliz. Pra te ensinar, meu amor, sendo. Pra te mostrar que existe felicidade fora de caixa, sim. Fora de limites inventados, da perfeição, do correto, do ideal, existe uma liberdade de escolha intensa: Quem queremos ser?

E nada é fácil aqui. Pra ti, uma infância totalmente fora do padrão. Quatro anos de tratamentos especializados de reabilitação. Sem férias, sem descanso. Quatro anos sendo compreensivo com coisas que eu sei que nem sempre tu entendes. Essa maturidade que a vida te exigiu antes da hora. Pra mim, abrir mão de todo meu mundo, para olhar pro teu. Pra ser teus braços e tuas pernas por aí. Ser a continuidade do teu corpo no mesmo passo que me afasto do meu - tentando ser equilibrista e sempre levando tombos. Ver as dificuldades financeiras todas se empilharem no meu travesseiro que deito e não durmo. As mil dúvidas do futuro e só uma promessa levantando as minhas pernas pela manhã: Não vou desistir de ti.

Tem coisas que ando repetindo. Tipo mantras da nossa selva particular. A vida é maravilhosa. O cérebro é sagrado. Te amo até a lua, ida e volta, 57 vezes. Tu é meu sol. Avante, bichinho, avante. Lembretes contínuos daquilo que realmente importa. Tu cresceu, filho. Mais rápido do que os meus medos. Um pequeno rapaz, inteligente, corajoso, e olhos mais profundos que já encarei. Eu vejo cada detalhe de ti. Talvez justamente por não termos mais as palavras, passei a te ler com todos os sentidos, 360 graus. Teus tipos de sorriso, o tom dos teus olhos, a forma como tu te move em cada situação. Te faço muitas perguntas pra poder te descobrir, e te ajudar a ouvir a tua voz, de alguma forma. Temos um tipo de conexão que eu nunca conheci antes. Acho que descobri o amor dançando contigo. Empurrando a tua cadeira por calçadas difíceis, enquanto choramos de rir de alguma bobagem. Escolho ver as partes bonitas em tudo isso. As curvas que demos em um prognóstico cheio de “nunca mais” e “impossível” – derrubados por ti um a um, cada vez mais – me lembra que podemos. Observar cada vez que teu corpo absorve uma melhora, entende um novo caminho. Cada vez que vejo tuas mãos desenhando. Cada vez que tu fica mais um milésimo de segundo de pé. Cada vez que me assusto ao te ver sentado sozinho na cama, porque nunca achei que tu conseguiria. E enche meus olhos de ti e de todo o amor que conheço. O teu sorriso de meio metro cheio de dentes, os teus pequenos milagres. Talvez sejam uma coisa só.

É tão difícil romper com o peso dessas placas, João. Se abraçar na dor como uma medalha, enquanto afundamos em nós mesmos, é andar em linha reta. Assumir a placa é ter o direito inquestionável de permitir que o sofrimento dite caminhos, que as perdas falem sobre quem somos, para sempre. O que não conseguimos fazer, o quanto não fomos felizes. E é esse um dos meus grandes motivos para me orgulhar de ti: A tua alegria escancarada. Estrondosa. Sem razão. Força, afinal, não era bem o que eu pensava, sabe? Força é aquilo que somos capazes de construir a partir das nossas dores. Força é acolher sofrimento e felicidade, juntos. Ser resiliente sem endurecer, e assumir a responsabilidade dessa decisão.

Penso que talvez tu te culpe mais tarde, e por isso já deixo dito, assinado e carimbado, que faria tudo de novo. E que ser tua mãe me tornou uma pessoa que gosto muito mais. Na fraqueza tem algo bonito, e na perda de muito, se encontra um impulso. Recomeçar cantarolando dá mais sorte que pouso de joaninha, assim como braços abertos protegem mais que escudo. Que tudo cabe, se for verdade. E que acordar feliz é uma escolha. Assim como desenhar um sol amarelo no meio do papel. Sol, de próprio punho. Trabalhar com o que se tem, afinal, é cantar sabedoria. E te olhar de alguma forma maluca, me fez me olhar com mais candura. O amor, filho, é essa coisa absurda, poderosa e transformadora. Mover-se também é deitar em uma rede pra ler poesia. Enfrentar também é gargalhar. A melhor forma, talvez. Caminhar pode ter tantas formas. Chegar é o ponto, mas aonde? Caio F. desejava que fosse doce, mas agridoce também me serve. Aos poucos perco a tontura da roda gigante, e das minhas próprias palavras. Pulo medos, que nem as sete ondas da virada. E continuo. Transformo tudo em uma voz, que as vezes até reconheço. E sinto assombro em perceber, vira e mexe, que apesar de tanto, e contra todas as probabilidades calculadas, das caixas feitas, das regras claras, das gentes que tudo sabem, nós somos felizes.
Contigo, sempre.

Lau Patrón.


Fotos: Gisele Sauer